O Legado de Michael Jackson é "Intocável"

Jacqueline Woodson é escritora, duas vezes finalista do Prêmio Nacional do Livro e vencedora de três Prêmios Newbery e do Prêmio do Los Angeles Times Book. Seus livros mais recentes são "Beneath a Meth Moon" e "Each Kindness," que foi melhor livro de 2012 da School Library Journal. Para segui-la no Twitter @ JackieWoodson


O Legado de Michael Jackson é "Intocável"

Detalhes meticulosos não podem mascarar a falta de percepção neste retrato de uma das figuras mais importantes da minha juventude

Por Jacqueline Woodson, em 15 de dezembro de 2012

Traduzido por Femme, exclusivamente para o MJ Dreamer. Proibida a reprodução.

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Na época em que ele tinha dois anos e meio de idade, meu filho estava obcecado com Michael Jackson - cantando letras truncadas para "Billie Jean", dançando junto com "Smooth Criminal" e "Bad", alertando-nos sobre quão assustador era "Thriller". Sua obsessão fez sentido para mim, porque Michael Jackson fazia sentido. Eu tinha sido uma criança dos anos 1960 e 70, crescendo na seção Bushwick do Brooklyn (o velho Bushwick, não o que as pessoas brancas agora vivem). Eu cresci no final do Voo Branco (a última família branca deixou o nosso bloco em 1971) na terra do afro esplendidamente arredondado, onde os cantos dos Panteras Negras e os Young Lords fluíam de nossas línguas, não porque entendíamos a sua enormidade, mas porque rimava e nos fazia sentir poderosos. Nós nos vimos refletidos nas obras de Nikki Giovanni e Pedro Pietri. Poderíamos ser a próxima Shirley Chisholm ou Hermon Badillo. "Say It Loud", James Brown gritava para nós. "Eu sou negro e tenho orgulho." Nina Simone nos disse que era jovem, talentosa e preta. Jesse Jackson nos mandou dizer "eu sou alguém!" E nós éramos. E Michael Jackson representou todas as nossas fabulosidades embrulhadas em um menino e seus irmãos.

Minha mãe migrou da Carolina do Sul, em 1968, e encontrou uma liberdade em Nova York, que ela nunca poderia sentir de volta para casa. Mas o Sul ficou com ela - nos amendoins salgados e familiares quilos de bolos enviados, na cadência lenta do Sul de suas palavras e sempre que a questão da raça era falada. O que era frequente. Nos fins de semana, ela pegava a sua peruca afro, pulverizada com Afro Sheen Holding Hair Spray e guardava ela na caixa de isopor, seu próprio cabelo curto natural agora livre por 48 horas.

Quando Michael Jackson e seus irmãos apareciam na tela da televisão, minha irmã e eu beijávamos a tela, enquanto meus irmãos praticavam suaves movimentos do grupo atrás de nós e minha mãe olhava com orgulho, adoração silenciosa. Nas raras ocasiões em nossa mãe nos permitia assistir a um filme de Elvis Presley, nós sabíamos que era melhor do que ir perto da tela. Era simplesmente pela graça de ter uma televisão com apenas seis canais de trabalho e um dia de fim de semana chuvoso em que ele era mesmo permitido dentro da nossa casa. Várias vezes, ouvimos como Elvis havia sido citado como dtendo dito que a única coisa que uma pessoa negra poderia fazer por ele era engraxar os seus sapatos. Vínhamos palestras ad nauseam sobre como ele tinha roubado os nossos movimentos, nosso estilo de cantar, até mesmo uma canção ou duas ou três. Ele era profundamente não amado em nossa casa e em muitas casas da nossa comunidade predominantemente negra e latina. Mas minha irmã e eu secretamente amavamos ele. A diferença era que nós amávamos Elvis à distância. Nós sabíamos que nunca o encontraríamos, sabíamos que ele nunca iria nos olhar nos olhos e realmente nos ver. Nós sabíamos que as meninas que ele amava dentro e fora das telas não eram Black and Beautiful - como nós estavam sendo ensinadas que éramos. Nós sabíamos que Elvis não entenderia nossas maravilhas. Nós sabíamos que ele era diferente. Mas isso não importava. Nós tínhamos Michael. Michael Jackson e seus irmãos olhavam para a câmera e nos viam. Sua pele era marrom como a nossa. Seu cabelo era grosso e natural, da mesma forma como o nosso era. Suas roupas eram, se nós pudésemos ofertálas a eles, roupas que nós teríamos usado. E em nosso pequeno lugar no Universo, nossa família tinha uma ligação ainda mais profunda. The Jackson Five, havia rumores, como nós, eram Testemunhas de Jeová. Num tempo em que a nossa conservadora, incompreendida (mesmo por nós) religião era algo que mantinha a minha irmã e os irmãos e eu muito distantes até mesmo os nossos amigos mais próximos, aqui nós estávamos assistindo um superstar que acreditava no Armageddon, na ressurreição, no Novo Mundo, em Jeová. Aqui estava um ídolo que não tinha permissão para celebrar aniversários ou feriados, que, quando não estava na estrada, provavelmente tinha que sentar para os mesmos estudos da bíblia na noite de segunda, os estudos da manhã de domingo da Sentinela, quinta à noite da Escola do Ministério e da breve oração: "Obrigado, Senhor, por este alimento e todas as outras bênçãos, através de seu filho, Jesus Cristo. Amém," antes de cada refeição. A possibilidade de um dia estar no mesmo lugar, com Michael Jackson, seja neste mundo ou no próximo, fazia sentido incrível para nós. Afinal, era uma parte do plano de Deus. Ou assim pensávamos.

Mas os anos se passaram.

Nós crescemos e longe da religião. Saímos ou permanecemos trancados, passamos para a faculdade ou tivemos empregos ao sair da escola. Conforme demos passos para o mundo, nós tivemos "Black Is Beautiful" e "Boriqua Forever" profundamente arraigados em nosso sangue e nossa sensação de que poderíamos ser e se tornar nos fez corajosos e nos moveu para a frente. Assim como Michael Jackson mudava fisicamente, nós também o fizemos. Ganhamos peso ou não, aumentamos os seios, alisamos o cabelo, fizemos nossas sobrancelhas. E mesmo se tivéssemos sido ensinados que "Black Don’t Crack” - que a melanina na nossa pele mantinha as rugas à distância e que somente as pessoas brancas faziam coisas malucas como cirurgia plástica - alguns de nós fizemos um pouco de trabalho em torno dos olhos, esticamos permanentemente o cabelo, tiramos um pouco de gordura dos quadris e da barriga, afinamos nossos narizes apenas um toque. Nós não queríamos ser brancos ou até mesmo "menos negros." Queríamos ser um pouco diferente.

Como jovens adultos, nós não conhecíamos a profunda história de abuso físico de Michael e não entendíamos o trauma de sua infância. Enquanto que nós olhamos para os espelhos de nossos eus futuros através das pessoas que vieram antes de nós, Michael olhava para nós. E, para ele, milhões de pessoas gritando deve ter refletido nada mais para ele do que um futuro apenas ligeiramente mais sombrio do que o seu passado. Como uma criança cresce com o abusivo Joe Jackson como um pai, quem foi o pai imprimindo a profundidade de sua beleza? Quem foi seu grupo de amigos lhe dizendo como ele era incrível, conhecendo-o profundamente e dando sentido a isso?

Como uma comunidade de cor, vimos o impacto trágico do mundo através dos olhos de Michael e do rosto em constante mudança. Ele parecia tão sortudo quando menino na tela de televisão em preto-e-branco de nossas infâncias. Agora, fomos percebendo, nós fomos os sortudos. Que, enquanto aqueles no mundo que nunca poderiam realmente nos conhecer rotulavam o nosso gueto de comunidade e nos chamavam de "menos favorecidos" (o que viria a ser substituído por "carentes" e, finalmente, simplesmente "urbano"), nós estávamos sendo protegidos e mimados pelos pais, que iam garantir que nosso senso de beleza e valor seria sentido por todo o caminho para a nossa medula.

É por isso que quando eu li o título da biografia exaustiva e desgastante de Randy Sullivan, "Intocável: A vida estranha e a trágica morte de Michael Jackson," eu já adiei isso. A vida de quem não é estranha? Cuja morte não é trágica? Que tipo de olhar do lado de fora poderia vir com tal título insensível? Como poderia Randy saber alguma coisa, se ele não se sente, como nós, na frente da tela da TV como o mundo de Black and White, e o que significava ser uma criança de cor dentro daquele mundo que caía sobre nós. E anos mais tarde, quando as pessoas brancas me perguntavam como eu explico Michael Jackson "branco" para meus filhos, eu respondi: "O que há para explicar?" Porque qualquer um que tenha passado um minuto neste país sabe que não se pode "tornar-se branco." Michael Jackson era um performer fantástico com um passado devastador que não tinha espelhos com que ver o seu lindo eu e quis, assim, mudar o rosto que eu amava como um filho. Ele não era menos negro. Nem menos Michael. Pelo menos, não para as pessoas que realmente viam ele.

Sullivan traz uma incrível quantidade de detalhes para a biografia. Pergunte-me sobre o quarto de infância de Michael. Eu posso lhe dizer agora. Pergunte-me sobre os advogados de Jackson, as ações judiciais, os puxa-sacos e vícios em benzos. Eu sei. Pergunte-me sobre seus hábitos de gastos, e aliados e inimigos e aliados que se tornaram inimigos. Pergunte-me sobre Michael e seus filhos indo para Las Vegas e saindo de Las Vegas e como eles viajaram e do tamanho de seus quartos de hotel. No entanto, eu encontrei-me desligada e francamente aborrecida com as minúcias. Era como se Sullivan percebesse muito cedo que ele não tinha nenhuma pista sobre quem Jackson realmente era, e ao invés de descobrir isso (e talvez até falar um pouco sobre o que significa ser um homem branco escrevendo sobre um homem negro), ele tentou preencher os buracos com minúsculos detalhes desnecessários. Página após página após página deles.

E porque cada detalhe é cuidadosamente escrito e relatado com tal falta de empatia ou auto-reflexão, que quando que eu estava no meio do livro, eu não queria mais isso na minha casa. Ele não aprofundou ou diminuiu os meus sentimentos por ou a compreensão de Michael Jackson. Sim, existem 601 páginas deste livro, seguidas de mais 175 páginas de notas e reconhecimentos. Para alguns, isso pode parecer importante - que alguém iria querer gastar tanto tempo e papel investigando uma vida. O que me entristece é que Sullivan parece ter perdido a parte mais importante daquela vida - que mudou e continua a mudar a vida das pessoas de cor em todo o mundo.

Meu filho tem quase cinco anos agora, e apesar de ter superado a sua obsessão por Michael Jackson, sempre que uma das músicas de Jackson vem, ele pára tudo o que está fazendo e parece refletir enquanto ele ouve as palavras. Ao perguntar-lhe se ele vai cantar junto, ele às vezes o faz, outras vezes, ele diz, "eu estou só ouvindo." Talvez ele já saiba o que Sullivan nunca aprendeu - a história de Michael Jackson, como sua música, é inerentemente entendida por aqueles que verdadeiramente escutam. E para aqueles que o fazem, nenhuma outra explicação é necessária.


Fonte: Salon